Sobre cotovias e lobos
Todas as manhãs de domingo, quando eu me
levantava, ele estava lá, sentado na grande sala de estar da casa de minha
infância com um livro nas mãos, às vezes um jornal ou uma enciclopédia. Meu
pai. Filho de imigrantes italianos que vieram ao Brasil fugidos da tragédia da
guerra, um mecânico de máquinas agrícolas, tinha grandes mãos que cheiravam a
graxa, pouca escolaridade, mas lia Vitor Hugo. Meu avô Isidoro, homem simples e
austero, trouxe na bagagem a esperança
de construir uma vida de paz e um amor pelas notícias, era comum vê-lo voltar
da rua, aos sábados, com um jornal debaixo do braço que ele lia ávida e
silenciosamente. E assim minha infância se
fez, numa casa antiga, cheia de tios e tias falantes, crianças barulhentas e entre
dois homens que gostavam de ler.
Aos cinco anos minha vida era povoada
de histórias que meu pai Mário nos contava à noite. Elas falavam de reinos
distantes, terras longínquas numa Europa desconhecida, de povoados cobertos de
neve com lobos que uivavam à noite e cotovias que cantavam ao amanhecer. Outros
mundos, outros povos, entravam pela janela nas noites frias de inverno e
enchiam nossa casa de vida, enquanto nos enrolávamos nas mantas em nossas
camas. Entre jornais, livros e histórias, a minha alfabetização se deu
rapidamente e ao entrar na escola eu já conhecia as letras. Então vieram as
revistas em quadrinhos que chamávamos de gibis, me pai as comprava regularmente
para mim e minhas irmãs e o meu mundo se encheu da alegria e ingenuidade do Cebolinha
e da Mônica e da magia de Walt Disney: Tio Patinhas, Donald, Margarida e Mickey eram meus companheiros inseparáveis. Eles
estimulavam a minha imaginação e me despertavam para outras leituras que viriam
a seguir. Aos nove anos comecei a frequentar a biblioteca da cidade e conheci o
mago Monteiro Lobato que me pegou pela mão, me levou ao sítio encantado de dona
Benta, me apresentou Emília, Pedrinho e
Narizinho. Minha casa não tinha luxo, mas era povoada de sonhos que a leitura
me trazia e era comum eu passar horas escondida debaixo de um pé de limão, no
fundo do quintal, perdida no reino das águas claras...
À medida que fui amadurecendo, a escola
também foi fazendo o seu papel, me apresentou outros autores, veio a série Vagalume
com suas aventuras saborosas e a sensibilidade explícita de José Mauro de
Vasconcelos...
O tempo passou, outras leituras foram
acrescentadas a minha vida, leio livros,
jornais, revistas, leio o mundo. Hoje minha casa é cheia de livros de todos os
tipos que se espalham por todos os cômodos e que a empregada vive teimando em
acomodar. Literatura que vai do Brasil à Rússia, de contos a romances e
crônicas, e jornais, e gibis... Sim, devo admitir que ainda tenho um prazer dolorido
de entrar numa banca de jornal, pegar um Pato Donald nas mãos, levá-lo ao nariz
e sentir o antigo cheiro de tinta que orvalhou minha infância. E que
mesmo tendo partido há tantos anos, meu avô ainda me acena com seu jornal
enquanto desce a rua ensolarada nas manhãs de sábado. E nas noites de inverno, ainda
ouço a voz de meu pai sussurrando suas histórias fantásticas sobre lobos e
cotovias, enquanto o vento canta lá fora...